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DISCURSOS

Academia Nacional de Farmácia
Acadêmico Caio Romero Cavalcanti
DD Presidente da Academia Nacional de Farmácia
Senhores componentes da mesa, Autoridades presentes,
Senhoras, Senhores

I - Introdução
Sinto-me verdadeiramente honrada e feliz com meu ingresso na Academia Nacional de Farmácia.
Compartilho tal alegria com muitas pessoas que, no decorrer de minha vida, tanto no âmbito pessoal como no profissional, estiveram a meu lado em todos os momentos difíceis, ou gloriosos. Gostaria de mencionar particularmente o Prof. Dr. Lauro Domingos Moretto, digno de todo o meu respeito e admiração, e o Dr. Caio Romero Cavalcanti, a quem me dirijo como representante dos demais membros desta Academia.
A Academia Nacional de Farmácia é uma instituição que cultua a ciência, as artes e particularmente a Farmácia, como valorosa área de conhecimento.
Ao ser informada desta alvissareira notícia, recebi com igual satisfação a informação de que iria ocupar a Cadeira nº 62 da Seção de Ciências Naturais desta Academia, que tem por patrono o Prof. Dr. Carlos Henrique Robertson Liberalli, fato que me honra ainda mais, por suas excelentes qualidades com docente, pesquisador e administrador.
Nascido no Rio de Janeiro em 13 de setembro de 1909, graduou-se em Farmácia na sua cidade natal onde, já em 1927, ainda estudante prestes a graduar-se, freqüentava a Associação Brasileira de Farmacêuticos, à qual se manteve sempre ligado.
Em 1939, deslocou-se para São Paulo, com a meta de assumir a direção técnica do “Instituto Medicamenta Fontoura”.
Ao lado da atividade técnica que desenvolvia na indústria farmacêutica, interessou-se pela carreira universitária, tendo obtido a livre docência de Farmacotécnica em 1946, e a cátedra em 1948.
A vida profissional de Liberalli sempre se desenvolveu entre dois pólos: a atividade na indústria farmacêutica e a docência universitária. Deixou lições perenes a todos os jovens, através de colaboração constante em jornais e revistas especializadas. Na cátedra, além de lecionar durante vinte e dois anos nas áreas da Farmacotécnica e da Química Farmacêutica, abriu os horizontes da História da Farmácia nos anos de 1967, 1968 e 1969, na disciplina optativa de “História da Farmácia e da Bioquímica”.
Chamado para atuar fora do campo farmacêutico, implantando e dirigindo a Faculdade de Odontologia de Piracicaba, mais tarde integrada à Universidade Estadual de Campinas, realizou obra de grande valor, merecendo, ao exonerar-se da função de diretor, em julho de 1968, o comentário escrito pelo Reitor Zeferim Vaz: “estou certo de que a história da educação no Brasil registrará o nome do professor Liberalli como de um singular estimulador do progresso cultural brasileiro”. Foi um dínamo movimentando todas as associações científicas e profissionais a que pertenceu, emprestando-lhes o concurso de sua mente privilegiada.
Sua contribuição para a identidade da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP estendeu-se ainda à escolha da cor distintiva da faixa, do capelo e da borla das vestes talares. Em Congregação de 1964, escolheu, apoiado em documentação que apontava a tradição da Universidade de Coimbra, a cor púrpura (roxo avermelhado) para aquelas insígnias, sendo aprovado.

II – Histórico Pessoal
Ao ler sobre a trajetória profissional do Prof. Liberalli, foi inevitável identificar-me com sua vida e obra.
À sua semelhança, formei-me em Farmácia e Bioquímica. Como ele, também comecei minha carreira na indústria farmacêutica, inicialmente em laboratório internacional com administração norte-americana, o que me permitiu aprendizado rico na área farmacêutica e biotecnológica. Seguiu-se um período em que atuei em uma empresa de origem européia, agregando maior abrangência de atividades e conceitos em distinta linha de produtos e processos. Seguidamente usufruí de experiência com produtos médico-hospitalares, inicialmente em empresa norte-americana e posteriormente brasileira, novamente agregando áreas distintas, com os aspectos de biocompatibilidade dos materiais poliméricos, e grande envolvimento com a área regulatória e a garantia de qualidade.
Da mesma forma, pude observar que, no que se refere a minha posterior intensa dedicação à pesquisa e à formação didática, focos de minha carreira, uma vez mais o Prof. Liberalli se apresentava como um modelo que, sem sabê-lo, segui.
Assim, desde 1978, dei início às atividades na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.
Aproveitando conhecimento adquirido na indústria farmacêutica, à luz dos conhecimentos científicos, desenvolvi uma excitante linha de pesquisa, desafiadora, e pude transmitir experiência e conhecimento aos alunos, respeitando os níveis de graduação e de pós-graduação.
Surpreendentemente, nossa trajetória comum uma vez mais se repetiu em relação às atividades administrativas. Após diferentes outros cargos, estou hoje na direção da FCF-USP, assim como o Prof. Liberalli ocupou o cargo de Diretor de Unidade, tarefa desempenhada com maestria.
A carreira universitária proporcionou-me uma visão complementar da Farmácia, muito mais humana e crítica, bem como cultural. Assim, através de minha carreira acadêmica, adquiri uma formação holística, ferramenta essencial para alguém que, como eu, tem em suas mãos a responsabilidade de formar futuros, competentes e íntegros farmacêuticos.

III – Breves notas históricas
Na aurora das civilizações, o homem atribuía a deuses e demônios seus males ou sua ventura, e combatia a doença e a dor com preces e encantamentos. Assim, no início, as Ciências da Saúde eram representadas por sacerdotes que desempenhavam ainda os papéis de médicos, farmacêuticos e psicólogos. Haja visto o humilde José de Anchieta, o irmão que preparava os remédios em São Paulo, por isso o primeiro boticário de Piratininga.
Em 1240, a Farmácia foi separada oficialmente da Medicina por um edital de Frederico II, imperador da Prússia, que estabeleceu na mesma época um código de ética profissional.
Nascia então uma nova ciência, rica em contribuições valiosas para a vida humana, não só no âmbito da saúde, mas também da cultura.
Com o surgimento da pesquisa científica, passou-se a ter um maior interesse pela química, experimentada na Idade Média por homens ávidos de conhecimentos relativos à vida. Destes alquimistas, muitos se destacaram, como Eckart (1260-1327), por tentarem utilizar a Alquimia na preparação de medicamentos. Paracelso definiu a Alquimia como sendo “A ciência de transformar as matérias-primas da Natureza em produtos aperfeiçoados, úteis à Humanidade”.
As teorias de Paracelso tiveram grande influência nos séculos XVI e XVII e sua rivalidade com Galeno acabou tornando suas obras proibidas nas Universidades, fato que culminou com as agitações estudantis de Paris e Heidelberg, contra estas proibições.
O fato é que Paracelso atraiu muito mais os farmacêuticos que os médicos, pois dava-lhes o suporte científico de que precisavam para se aprofundarem nas pesquisas. Na Inglaterra, os boticários, até então limitados à categoria de comerciantes, criaram suas associações específicas com fins científicos.
Assim, a Ciência Farmacêutica foi se emancipando, sempre liderada por nomes proeminentes, cujas valiosas contribuições perduram, como nos seguintes exemplos:

  1. Nicolas Le Fevbre no século XVII (1610-1674) introduziu o emprego do termômetro.
  2. No período Barroco, mais precisamente em 1618, é editada a Primeira Farmacopéia Londrina.
  3. Em 1744, o farmacêutico e químico francês Guillaume François Rouelle (1703-1770), professor de Lavoisier, resolveu o problema dos sais, definindo-os como produtos da união entre ácidos e bases.
  4. O farmacêutico alemão Andreas Sigismund Margraf no século XVIII (1709-1782), introduziu o álcool como solvente para extração de matéria-prima e empregou o microscópio para exames de cristais de açúcar.
  5. Ainda no século XVIII (1773), a uréia é descoberta assim como o ácido hipúrico, ambos pelo farmacêutico francês Hilaire Marin Rouelle (1718-1779), irmão de Guillaume François Rouelle, que ainda identificou a presença de ferro no sangue.

Farmacêutico de visão, o Prof. Andrejus Korolkovas afirmou relativamente à importância da Farmácia para a saúde: “Não há fronteiras que separem a Medicina da Farmácia, na verdade as fronteiras que existem servem apenas para unir as duas profissões da área de saúde. O médico, mercê de seus profundos estudos, conhece o homem, tanto o sadio quanto o doente, e sabe perfeitamente diagnosticar e prescrever. O farmacêutico, graças a sua ciência e arte, conhece profundamente o medicamento e sabe fabricá-lo e zelar pela sua pureza. Sem o médico, o paciente, acometido de alguma doença, não saberia como se tratar. Em contrapartida, que poderia o médico fazer se não houvesse farmacêutico para lhe colocar nas mãos medicamentos eficazes e seguros, armas com as quais, em última análise, geralmente se luta contra as doenças?

IV – Tendências e Desafios
Diante de tão vasta e rica história, não é surpreendente constatar hoje, em pleno século XXI, a fantástica evolução da ciência, e particularmente da Farmácia, mas é instigante avaliar seu imensurável potencial, diante de nós.
Temos a considerar que, atualmente, os produtos farmacêuticos contam com aproximadamente 10.000 itens, em diversas apresentações comercializadas.
Hoje, venenos derivados de animais, plantas e microrganismos instigam cientistas ao desenvolvimento de novos fármacos, e seguem estudos relativos a suas propriedades químicas, farmacológicas, zootoxicológicas e imunológicas. Toxinas estão se tornando instrumentos no estudo de processos biológicos e material relacionado aos problemas veneno-antiveneno, e toxinologia.
Estruturas obtidas por rotas sintéticas, com arranjos conformacionais, exibem grande variedade de propriedades terapêuticas, tais como aquelas dirigidas à quimioterapia do câncer, antibacterianas, contra doenças auto-imunes, doenças cardiovasculares e inflamatórias, bem como desordens neurológicas.
Mas novos desafios permanentemente surgem, como a doença de Alzheimer, atingindo aproximadamente 10% da população mundial com 65 anos de idade, sendo a mais comum forma de demência em adultos e caracterizada por plaquetas senis e déficites colinérgicos.
Na era pós-genoma, o RNA emergiu como um alvo molecular válido envolvido em muitas vias bioquímicas, tais como interações de proteínas celulares. Importantes são as informações obtidas, os avanços recentes, no mimetismo dos aminoglicosídeos, mecanismos de resistência e relação estrutura-atividade, bem como os avanços na biotecnologia, ligados à obtenção de vacinas, e de muitos outros produtos.
Diante de tão fértil e fascinante contexto, é um privilégio extremamente gratificante ser um cientista, um docente responsável pela formação de novos valores e um administrador, a cujas mãos foi confiado o destino de uma instituição científica: a permanente transformação, fruto de contínuo estudo, pesquisa e renovação. Assim, uma vez mais espelho-me no exemplo do Prof. Liberalli, manifestando meu comprometimento com o presente e o futuro da ciência e da formação das próximas gerações de farmacêuticos. Parafraseando o grande Machado de Assis, sinto-me uma ponte que une os dois extremos da vida , passando a experiência do passado para as gerações futuras. Porém, assim como a água que flui sob a ponte, sempre com os olhos voltados para o devir, e em perpétua renovação.

Muito obrigada a todos.

Terezinha de Jesus Andreoli Pinto
São Paulo, 09 de agosto de 2007

Assis,  Machado de – Dom Casmurro. Rio de Janeiro, Ganier, 1988